ouveLer Miguel Torga

Brinquedo   

Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel. 

Miguel Torga, Diário I 

Câmara escura 

Devagar,
Hora a hora,
Dias a dia,
Como se o tempo fosse um bancho de acidez,
Volvendo com mais funda nitidez
O negativo da fotografia.  

E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto,
Em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade 
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade. 

Dois homens num só rosto!
Uma espécie de Jano sobreposto, 
Inocente
Impotente,
E condenado
A este assombro de se ver forrado
Dum pano de negrura que desmente
A nua claridade do outro lado.
 

Miguel Torga, Orfeu Rebelde 

Cantiga de Maldizer 

Esta menina que eu sei
É como a rosa-dos-ventos:
Ora grita aqui-d’el-rei,
Se alguém a vem namorar,
Ora maldiz os conventos
Onde o pai a quer guardar.
É um riso agradecido
E um pranto de se acabar.
Parece um fruto maduro, 
Do outro lado do muro, 
Com medo de ser comido
E medo de ali ficar. 

 Miguel Torga, Diário IV 

História Antiga 

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
                                       
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças. 

Miguel Torga, Antologia Poética 

Regresso 

Nua, a poesia sai dentre o arvoredo.
Como graça fugida ao namorado,
Vem a sorrir da causa do seu medo:
O seu corpo de noiva fecundado. 

Vem com o seu passo ledo,
Já sem rugas na fronte; descuidado
O coração divino, onde um segredo
Só em humana luz é revelado. 

Realidade, embriaguez, beleza,
Tudo ela traz e entrega no seu gesto.
Há no seu rosto aberto outra certeza. 

Outro sol, outro sonho, outra alegria.
O seu próprio regresso é o seu protesto
Contra o falso pudor por que fugia. 

Miguel Torga, Diário II