O Brinquedo – por João Matos
O Brinquedo – por Mariana Carvalho
O Brinquedo – por Sandra Vaz
O Brinquedo – por Marta Loureiro
Brinquedo
Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe
O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.
Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.
Miguel Torga, Diário I
Câmara escura – Santo Pestana
Câmara escura
Devagar,
Hora a hora,
Dias a dia,
Como se o tempo fosse um bancho de acidez,
Volvendo com mais funda nitidez
O negativo da fotografia.
E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto,
Em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.
Dois homens num só rosto!
Uma espécie de Jano sobreposto,
Inocente
Impotente,
E condenado
A este assombro de se ver forrado
Dum pano de negrura que desmente
A nua claridade do outro lado.
Miguel Torga, Orfeu Rebelde
Cantiga de Maldizer – por João Bento
Cantiga de Maldizer
Esta menina que eu sei
É como a rosa-dos-ventos:
Ora grita aqui-d’el-rei,
Se alguém a vem namorar,
Ora maldiz os conventos
Onde o pai a quer guardar.
É um riso agradecido
E um pranto de se acabar.
Parece um fruto maduro,
Do outro lado do muro,
Com medo de ser comido
E medo de ali ficar.
Miguel Torga, Diário IV
História Antiga – por Daniela Macedo
História Antiga
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga, Antologia Poética
Regresso – por Tomás Quina
Regresso
Nua, a poesia sai dentre o arvoredo.
Como graça fugida ao namorado,
Vem a sorrir da causa do seu medo:
O seu corpo de noiva fecundado.
Vem com o seu passo ledo,
Já sem rugas na fronte; descuidado
O coração divino, onde um segredo
Só em humana luz é revelado.
Realidade, embriaguez, beleza,
Tudo ela traz e entrega no seu gesto.
Há no seu rosto aberto outra certeza.
Outro sol, outro sonho, outra alegria.
O seu próprio regresso é o seu protesto
Contra o falso pudor por que fugia.
Miguel Torga, Diário II